O ano passado li este artigo do Miguel Esteves Cardoso, foi uma reportagem que ele fez para a Revista Sábado, penso que ajuda a desmistificar a ideia (errada!) que se tem da Festa do Avante.
Sim, é uma festa realizada pelo Partido Comunista Português, feita e vivida por Camaradas..mas não só!
Para vos deixar a pensar e quiçá mudar a ideia que muito boa gente têm.
(Para quem já leu, vale a pena reler)
“Dizem-se muitas mentiras
acerca da Festa do Avante! Estas são as mais populares: que é
irrelevante; que é um anacronismo; que é decadente; que é um grande
negócio disfarçado de festa; que já perdeu o conteúdo político; que hoje
é só comes e bebes.
Já é a Segunda vez que lá vou e posso garantir
que não é nada dessas coisas e que não só é escusado como perigoso
fingir que é. Porque a verdade verdadinha é que a Festa do Avante faz um
bocadinho de medo.
O que se segue não é tanto uma crónica sobre essa
festa como a reportagem de um preconceito acerca dela - um preconceito
gigantesco que envolve a grande maioria dos portugueses. Ou pelo menos a
mim.
Porque é que a Festa do Avante faz medo?
É muita
gente; muita alegria; muita convicção; muito propósito comum. Pode não
ser de bom-tom dizê-lo, mas o choque inicial é sempre o mesmo: chiça!,
Afinal os comunistas são mais que as mães. E bem dispostos. Porquê tão
bem dispostos? O que é que eles sabem que eu ainda não sei?
É sempre
desconfortável estar rodeado por pessoas com ideias contrárias às
nossas. Mas quando a multidão é gigante e a ideia é contrária é só uma
só – então, muito francamente, é aterrador.
Até por uma questão de
respeito, o Partido Comunista Português merece que se tenha medo dele.
Tratá-lo como uma relíquia engraçada do século XX é uma desconsideração e
um perigo. Mal por mal, mais vale acreditar que comem criancinhas ao
pequeno-almoço.
BEM SEI QUE A condescendência é uma arma e que fica
bem elogiar os comunistas como fiéis aos princípios e tocantemente
inamovíveis, coitadinhos.
É esta a maneira mais fácil de fingir que
não existem e de esperar, com toda a estupidez, que, se os ignoramos,
acabarão por se ir embora.
As festas do Avante, por muito que custe aos anticomunistas reconhecê-lo, são magníficas.
É
espantoso ver o que se alcança com um bocadinho de colaboração. Não só
no sentido verdadeiro, de trabalhar com os outros, como no nobre, que é
trabalhar de graça.
A condescendência leva-nos a alvitrar que “assim
também eu” e que as festas dos outros partidos também seriam boas caso
estivessem um ano inteiro a prepará-las. Está bem, está: nem assim iam
lá. Porque não basta trabalhar: também é preciso querer mudar o mundo. E
querer só por si, não chega. É preciso ter a certeza que se vai
mudá-lo.
Em vez de usar, para explicar tudo, o velho chavão da “
capacidade de organização” do velho PCP, temos é que perguntar porque é
que se dão ao trabalho de se organizarem.
Porque os comunistas não se
limitam a acreditar que a história lhes dará razão: acreditam que são a
razão da própria história. É por isso que não podem parar; que aguentam
todas as derrotas e todos os revezes; que são dotados de uma
avassaladora e paradoxalmente energética paciência; porque acreditam que
são a última barreira entre a civilização e a selvajaria. E talvez
sejam. Basta completar a frase "Se não fossem os comunistas, hoje não
haveria..." e compreende-se que, para eles, são muitas as conquistas
meramente "burguesas " que lhe devemos, como o direito à greve e à
liberdade de expressão.
É por isso que não se sentem “derrotados”. O
desaparecimento da URSS, por exemplo, pode ter sido chato mas, na
amplitude do panorama marxista-leninista, foi apenas um contratempo. Mas
não é só por isso que a Festa do Avante faz medo. Também porque é
convincente. Os comunas não só sabem divertir-se como são mestres, como
nunca vi, do à-vontade. Todos fazem o que lhes apetece, sem complexos
nem receios de qualquer espécie. Até o show off é mínimo e saudável.
Toda
a gente se trata da mesma maneira, sem falsas distâncias nem
proximidades. Ninguém procura controlar, convencer ou impressionar
ninguém. As palavras são ditas conforme saem e as discussões são
espontâneas e animadas. É muito refrescante esta honestidade. É bom (mas
raro) uma pessoa sentir-se à vontade em público. Na Festa do Avante é
automático.
Dava-nos jeito que se vestissem todos da mesma maneira e
dissessem e fizessem as mesmas coisas - paciência. Dava-nos jeito que
estivessem eufóricos; tragicamente iluminados pela inevitabilidade do
comunismo - mas não estão. Estão é fartos do capitalismo - e um
bocadinho zangados.
Não há psicologias de multidões para ninguém: são
mais que muitos, mas cada um está na sua. Isto é muito importante.
Ninguém ali está a ser levado ou foi trazido ou está só por estar. Nada é
forçado. Não há chamarizes nem compulsões. Vale tudo até o
aborrecimento. Ou seja: é o contrário do que se pensa quando se pensa
num comício ou numa festa obrigatória. Muito menos comunista.
Sabe
bem passear no meio de tanta rebeldia. Sabe bem ficar confuso. Todos os
portugueses haviam de ir de cinco em cinco anos a uma Festa do Avante,
só para enxotar estereótipos e baralhar ideias. Convinha-nos pensar que
as comunas eram um rebanho mas a parecença é mais com um jardim
zoológico inteiro. Ali uma zebra; em frente um leão e um flamingo; aqui
ao lado uma manada de guardas a dormir na relva.
QUANDO SE CHEGA à
Festa o que mais impressiona é a falta de paranóia. Ninguém está
ansioso, a começar pelos seguranças que nos deixam passar só com um
sorriso, sem nos vasculhar as malas ou apalpar as ancas. Em matéria de
livre de trânsito, é como voltar aos anos 60.
Só essa ausência de
suspeita vale o preço do bilhete. Nos tempos que correm, vale ouro. Há
milhares de pessoas a entrar e a sair mas não há bichas. A circulação é
perfeitamente sanguínea. É muito bom quando não desconfiamos de nós.
Mesmo
assim tenho de confessar, como reaccionário que sou, que me passou pela
cabeça que a razão de tanta preocupação talvez fosse a probabilidade de
todos os potenciais bombistas já estarem lá dentro, nos pavilhões
internacionais, a beber copos uns com os outros e a divertirem-se.
A
Festa do Avante é sempre maior do que se pensa. Está muito bem arrumada
ao ponto de permitir deambulações e descobertas alegres. Ao admirar a
grandiosidade das avenidas e dos quarteirões de restaurantes,
representando o país inteiro e os PALOP, é difícil não pensar numa
versão democrática da Exposição do Mundo Português, expurgada de pompa e
de artifício. E de salazarismo, claro.
Assim se chega a outro
preconceito conveniente. Dava-nos jeito que a festa do PCP fosse
partidária, sectária e ideologicamente estrangeirada. Na verdade, não
podia ser mais portuguesa e saudavelmente nacionalista.
O
desaparecimento da União Soviética foi, deste ponto de vista,
particularmente infeliz por ter eliminado a potência cujas ordens eram
cegamente obedecidas pelo PCP.
Sem a orientação e o financiamento de Moscovo, o PCP deveria ter também fenecido e finado. Mas não: ei-lo. Grande chatice.
Quer
se queira quer não (eu não queria), sente-se na Festa do Avante! Que
está ali uma reserva ecológica de Portugal. Se por acaso falharem os
modelos vigentes, poderemos ir buscar as sementes e os enxertos para
começar tudo o que é Portugal outra vez.
A teimosia comunista é
culturalmente valiosa porque é a nossa própria cultura que é teimosa. A
diferença às modas e às tendências dos comunistas não é uma atitude: é
um dos resultados daquela persistência dos nossos hábitos. Não é uma
defesa ideológica: é uma prática que reforça e eterniza só por ser
praticada. (Fiquemos por aqui que já estou a escrever à comunista).
A
Exposição do Mundo português era “para inglês ver”, mas a Festa do
Avante! Em muitos aspectos importantes, parece mesmo inglesa. Para mais,
inglesa no sentido irreal. As bichas, direitinhas e céleres, não podiam
ser menos portuguesas. Nem tão-pouco a maneira como cada pessoa limpa a
mesa antes de se levantar, deixando-a impecável.
As brigadas de
limpeza por sua vez, estão sempre a passar, recolhendo e substituindo os
sacos do lixo. Para uma festa daquele tamanho, com tanta gente a
divertir-se, a sujidade é quase nenhuma. É maravilhoso ver o resultado
de tanto civismo individual e de tanta competência administrativa. Raios
os partam.
Se a Festa do Avante dá uma pequena ideia de como seria
Portugal se mandassem os comunistas, confessemos que não seria nada mau.
A coisa está tão bem organizada que não se vê. Passa-se o mesmo com os
seguranças - atentos mas invisíveis e deslizantes, sem interromper nem
intimidar uma mosca.
O preconceito anticomunista dá-os como
disciplinados e regimentados – se calhar, estamos a confundi-los com a
Mocidade portuguesa. Não são nada disso. A Festa funciona para que eles
não tenham de funcionar. Ao contrário de tantos festivais apolíticos,
não há pressa; a ansiedade da diversão; o cumprimento de rotinas
obrigatórias; a preocupação com a aparência. Há até, sem se sentir
ameaçado por tudo o que se passa à volta, um saudável tédio, de
piquenique depois de uma barrigada, à espera da ocupação do sono.
Quando
se fala na capacidade de “mobilização” do PCP pretende-se criar a
impressão de que os militantes são autómatos que acorrem a cada toque de
sineta. Como falsa noção, é até das mais tranquilizadoras. Para os
partidos menos mobilizadores, diante do fiasco das suas festas, consola
pensar que os comunistas foram submetidos a uma lavagem ao cérebro.
Nem vale a pena indagar acerca da marca do champô.
Enquanto
os outros partidos puxam dos bolsos para oferecer concertos de borla, a
que assistem apenas familiares e transeuntes, a Festa do avante
enche-se de entusiásticos pagadores de bilhetes.
E porquê? Porque é a
festa de todos eles. Eles não só querem lá estar como gostam de lá
estar. Não há a distinção entre “nós” dirigentes e “eles” militantes,
que impera nos outros partidos. Há um tu-cá-tu-lá quase de festa de
finalistas.
É UM ALÍVIO A FALTA de entusiasmo fabricado – e, num
sentido geral de esforço. Não há consensos propostos ou unanimidades às
quais aderir. Uns queixam-se de que já não é o que era e que dantes era
melhor; outros que nunca foi tão bom.
É claro que nada disto será
novidade para quem lá vai. Parece óbvio. Mas para quem gosta de dar uma
sacudidela aos preconceitos anticomunista é um exercício de higiene
mental.
Por muito que custe dize-lo, o preconceito - base, dos mais
ligeiros snobismos e sectarismos ao mais feroz racismo, anda sempre à
volta da noção de que “eles não são como nós”. É muito conveniente esta
separação. Ma é tão ténue que basta uma pequena aproximação para
perceber, de repente, que “afinal eles são como nós”
Uma vez passada a
tristeza pelo desaparecimento da justificação da nossa superioridade (e
a vergonha por ter sido tão simples), sente-se de novo respeito pela
cabeça de cada um.
Espero que não se ofendam os sportinguistas e
comunistas quando eu disser que estar na Festa do Avante! Foi como
assistir à festa de rua quando o Sporting ganhou o campeonato. Até aí eu
tinha a ideia, como sábio benfiquista, que os sportinguistas eram uma
minúscula agremiação de queques em que um dos requisitos fundamentais
era não gostar muito de futebol.
Quando vi as multidões de
sportinguistas a festejar – de todas as classes, cores e qualidades de
camisolas -, fiquei tão espantado que ainda levei uns minutos a ficar
profundamente deprimido.
POR OUTRO LADO, quando se vê que os
comunistas não fazem o favor de corresponder à conveniência
instantaneamente arrumável das nossas expectativas – nem o PCP é o IKEA
-, a primeira reacção é de canseira. Como quem diz:”Que chatice – não só
não são iguais ao que eu pensava como são todos diferentes. Vou ter de
avaliá-los um a um. Estou tramado. Nunca mais saiu daqui.”
Nem tão pouco há a consolação ilusória do pick and choose.
...É
uma sólida tradição dizer que temos de aprender com os comunistas...
Infelizmente é impossível. Ser-se comunista é uma coisa inteira e não se
pode estar a partir aos bocados. A força dos comunistas não é o sonho
nem a saudade: é o dia-a dia; é o trabalho; é o ir fazendo; e
resistindo, nas festas como nas lutas.
Hás uma frase do Jerónimo de
Sousa no comício de encerramento que diz tudo. A propósito de Cuba (que
não está a atravessar um período particularmente feliz), diz que
“resistir já é vencer”.
É verdade – sobretudo se dermos a devida importância ao “já”. Aquele “já” é o contrário da pressa, mas é também “agora”.
Na
Festa do Avante! Não se vêem comunistas desiludidos ou frustrados. Nem
tão pouco delirantemente esperançosos. A verdade é que se sente a
consciência de que as coisas, por muito más que estejam, poderiam estar
piores. Se não fossem os comunistas: eles.
Há um contentamento que é
próprio dos resistentes. Dos que existem apesar de a maioria os
considerar ultrapassados, anacrónicos, extintos. Há um prazer na
teimosia; em ser como se é. Para mais, a embirração dos comunistas,
comparada com as dos outros partidos, é clássica e imbatível: a pobreza.
De Portugal e de metade do mundo, num Portugal e num mundo onde uns
poucos têm muito mais do que alguma vez poderiam precisar.
NA FESTA
DO AVANTE! Sente-se a satisfação de chatear. O PCP chateia. Os
sindicatos chateiam. A dimensão e o êxito da Festa chateiam. Põem em
causa as desculpas correntes da apatia. Do ensimesmamento online, do
relativismo ou niilismo ideológico. Chatear é uma forma especialmente
eficaz de resistir. Pode ser miudinho – mas, sendo constante, faz a
diferença.
Resistir é já vencer. A Festa do Avante é uma vitória
anualmente renovada e ampliada dessa resistência. ... Verdade se diga,
já não é sem dificuldade que resisto. Quando se despe um preconceito, o
que é que se veste em vez dele? Resta-me apenas a independência de
espírito para exprimir a única reacção inteligente a mais uma Festa do
Avante: dar os parabéns a quem a fez e mais outros a quem lá esteve.
Isto é, no caso pouco provável de não serem as mesmíssimas pessoas.
Parabéns! E, para mais, pouquíssimo contrariado.(E só com um bocadinho de nada com medo)."
Artigo de Miguel Esteves Cardoso, em SÁBADO de 13 de Setembro de 2007:
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